RESENHA: Os Irmãos Karamázov


Último livro do grande escritor russo Fiódor M. Dostoievski, Os Irmãos Karamázov é considerada a obra prima do autor e recebeu de Sigmund Freud elogio de deixar qualquer escritor nas alturas, tal o gabarito do enunciador: “O maior romance já escrito”.

O enredo se debruça sobre o relacionamento conturbado e complexo entre os membros da família Karamazov em uma cidade hipotética da Rússia do século XIX, narrada sobre o ponto de vista de um narrador anônimo que afirma ter acompanhado o terrível crime que envolveu a família e que repercutiu em todo o país cerca de 3 décadas atrás.

O patriarca da família, Fiódor Pavlovitch Karamázov, é um notório devasso que ascendeu socialmente graças ao dote de suas mulheres, que vieram falecer sem envolvimento direto deste, e vive uma vida de excessos sustentada por negociatas.




Péssimo pai, relegou a criação de seus filhos a parentes, criados e comunidade monastérica e ainda cuidou de subtrair soma considerável da herança de um dos seus filhos, fruto do primeiro casamento.

A prole desenvolveu-se com personalidades distintas:

O caçula, Alexi (ou Aliocha) Karamazov, desde cedo revela um lado místico mais aflorado, passando a viver como noviço em um mosteiro aos cuidados do Starietz Zósima. Sem dúvida o mais honrado de todo o clã Karamázov.


O do meio, Ivan Fiodorovitch Karamázov, se tornou um fino intelectual manipulador atormentado pelos dilemas de sua erudição que suprime as convenções tradicionais de moralidade por meio de convicções ateias.

E o mais velho, Dmitri Fiodorovitch Karamázov, é o de personalidade mais parecida com a do pai, excessivo, ciumento, inseguro, paranoico, emocionalmente instável, mas ao contrário do genitor, consegue preservar parcela mínima de honradez em suas atitudes.

Esmiuçando a personalidade e o cotidiano dos personagens e da cidade onde residem, a trama acaba centrando-se na rivalidade destrutiva de Fiódor e Dmitri quando ambos se enamoram da mesma mulher, Grushenka, de fama e caráter contestável, que se compraz em humilhar os homens com jogos manipuladores desde que se sentiu ultrajada por seu primeiro noivo na tenra juventude. A disputa ainda ganha um elemento incendiário pelo ressentimento antigo de Dmitri para com o pai pelo fato do dito cujo ter se apossado de parte de sua herança - e por teimar em não o restituir.



Se existe algo proibitivo de se afirmar sobre esse romance, é o de ser óbvio.


 Inicia sugerindo que será um volume com narrador de personalidade marcante, expressando-se e interagindo com o leitor de forma muito particular, embora o faça no decorrer da estória, contudo logo adota um estilo impessoal como se fosse um narrador onisciente, quebrando o estilo em intervenções esporádicas ao longo das centenas de páginas do livro.

Em seguida, revela sua força avassaladora no campo psicológico dissecando nos mínimos detalhes, mas de modo a evitar que os relatos pormenorizados ficassem enfadonhos, o que se espera de um bom escritor, a persona dos principais personagens e até de alguns secundários, virtude que será mais detalhada adiante, e com isso pensa-se que será o tom que conduzirá a narrativa até o seu final. No entanto, apesar da impressão se revelar verdadeira, descobre-se que a obra não fica restrita a psicologismos. Logo envereda pelos campos da documentação histórica e da filosofia ao descrever, por exemplo, a rotina, os hábitos e as tradições da vida no mosteiro e o cerne da doutrina de uma das autoridades do recinto religioso, o Starietz Zósima.


Ainda trata de dramas familiares e para o leitor que embarca nessa longa jornada sem saber de absolutamente nada do enredo, que foi o meu caso, causa nova surpresa ao alterar a rota dos acontecimentos para uma trama de investigação policial (percebe-se que o autor tem uma queda por crimes hediondos, já que seu outro livro célebre, Crime e Castigo... o nome é autoexplicativo não é mesmo?) seguida por uma de júri, com exposições sagazes, bem elaboradas, coesas, em suma, brilhantes, tanto por parte da defesa como por parte da acusação.

Ufa! Quantas reviravoltas.

E isso não é algo ruim. 


Pelo contrário.

 Um livro de centenas de páginas, a versão que li, uma edição antiga da Abril, tem 534 páginas, mas há outras mais recentes que dividiram a estória em 2 volumes que  somam mais de mil páginas (suspeito que os parágrafos quilométricos que me deparei explique o feito da Abril em publicá-lo com pouco mais de quinhentas), precisa de um roteiro que não peque por ser monotemático ou por ter um ritmo engessado para se manter interessante e relevante até o final, para dar aquele “estalo” no leitor quando ameaça ficar sonolento ou aborrecido; por mais que se revele imperativo, para plena compreensão do argumento central, volume tão espesso. E elaborar roteiro de tamanha grandeza ajustando uniformemente variadas temáticas cumprindo, no meu entender, com o desafio de assegurar sua digestão a quem o ler, sem dúvida, é digno de admiração.

Um aspecto que achei interessantíssimo foi o da capacidade assombrosa de Dostoievski de conferir as diversas figuras de seu enredo personalidades tão ricas, tão próprias, tão críveis. Mesmo se valendo de poucas descrições quanto a fisionomias e trajes, ele consegue introduzir na cabeça do leitor traços, características, estilos marcantes dos protagonistas com suas análises precisas, eficientes, detalhadas sobre a natureza dos tipos, o que ameniza um pouco a difícil tarefa de ficar imerso no universo ficcional que desenvolvera. Logo que cita um personagem fica fácil vir a mente o retrato mental que se constitui da peça no instante do primeiro contato com os relatos do autor sobre sua persona.



Ele também é exitoso, claro, sempre, segundo o meu entendimento, em injetar vivacidade no ambiente, na cidade palco dos infortúnios dos Karamázov, ao jogar luz em vários personagens, uns com participação relevante, outros usados apenas como artifícios de roteiros, ao expor curiosidades, ao relatar ocorrências históricas dentro do universo ficcional, ao nominar tipos de diferentes camadas e funções sociais. Isso passa a sensação de movimento, de historicidade, de que há uma comunidade, uma sociedade em pleno funcionamento, a todo vapor, a revelia se a narração está concentrada em somente uma figura do enredo ou em um contexto mais amplo. O leitor se sente, de alguma forma, inserido, transportado até a longínqua Rússia do Século XIX. O fato de não manter a narrativa presa a um único núcleo é outro aspecto importante que colabora em grande escala no ato de gerar a referida mobilidade.

Um feito, julgo, notável para qualquer escritor.

O texto é verborrágico.


E isso tem pontos positivos e negativos.


Explicando o termo: é um estilo que se aproxima muito da linguagem do teatro, ou seja, tem bastantes diálogos, inumeráveis, extensos. Há capítulos inteiros só de diálogos. Há quem goste, há quem prefira o estilo mais tradicional. Mas informo que a obra não é feita só de conversas. É uma mescla de narração e diálogos onde o segundo se destaca pela sua abundância, o que não é tão corriqueiro nas publicações atuais.

Eu mesmo não me importo. Desde que os diálogos sejam bons e a estória interessante, embarco na leitura sem problema. E aqui há, sem sombra de dúvidas, exposições orais brilhantes, mas que, no meu discernimento, apresentam deficiências que prejudicam a leitura e compromete o desempenho, a finalidade, de muitos deles.


Mas comecemos pelo aspecto favorável.

Ao contrário de muitos escritos do período, o texto não gasta muito papel com descrições detalhadas e numerosas sobre ambientes físicos, sobre trajes, objetos a fim de deixar o leitor infalivelmente envolvido, embriagado, inserido no universo ficcional por meio de exposição sucessiva de cheiros, sabores, texturas etc. O faz, mas de maneira breve e julguei eficiente.  Voltando a considerar o tamanho do volume, isso deve ser tratado como uma excelente notícia, porque por mais habilidoso que seja o escritor em tornar minimamente interessante descrições detalhistas acerca do que é inanimado, se o estilo for renitente quanto a radiografar cada cenário, fatalmente irá fracassar na missão de deixá-las atraentes conforme o número de incidências dessa natureza se revelar elástico, ao menos eleva-se a probabilidade da ruína. Mas como é movido em grande parte por diálogos e está mais preocupado com o que há dentro do que por fora dos personagens, o estilo imprime ritmo interessante, ágil, embora exista partes que irá requerer paciência do leitor.

As falas dos personagens introduz dinâmica por expor, sem recursos de transição, intercalados um no outro, tanto o argumento inicial que motiva o ato do pronunciar-se como exemplificações, anedotas, digressões derivadas do tópico inicial e até mesmo mudanças bruscas de assunto. Em poucas páginas, absorve-se quantidade de informações que podem mudar completamente o cenário estabelecido no começo do capítulo. O que requer muita atenção por parte do leitor para não se perder na estória. Emprega ritmo que, sem o qual, poderia deixar a leitura com trechos mais arrastados, o que seria fatalmente desestimulador para vencer a robusta brochura.


No entanto, observo que esses assuntos vários espremidos nos diálogos, muitos deles com mudanças drásticas de humor, prejudica na hora de tentar se colocar na pele do de voz ativa, de imaginar sua interação com o interlocutor, ou interlocutores, seus gestos, tom, até o de compreender a sua real intenção ao emitir determinados raciocínios.

Injetar pequenas informações sobre a postura, o gestual, o sentimento interno durante os diálogos ajudaria no trabalho de total envolvimento com a estória e não creio que acrescentaria muito mais páginas e nem deixaria a leitura arrastada; pelo contrário, acho que deixaria os personagens e seus embates retóricos com cores muito mais vívidas e muita da emoção que se tenta passar em algumas passagens seriam transmitidas de melhor forma. Acresce que também se enxertaria momentos de “respiros” muito bem vindos entre as exposições longuíssimas que preenche a narrativa, pois é cansativo e pouco crível imaginar explanações à Fidel Castro com personagens estáticos, sem movimento, falando do início ao fim como se fosse uns robôs com feições impassíveis. Para quem tem muita criatividade, energia ou tempo de pensar por si próprio uma linguagem corporal personalizada para cada integrante do enredo pode até não se incomodar, mas quem não conta com um desses recursos, mesmo que temporariamente, é provável que se frustre.

Outro problema é a quantidade de personagens. São muitos e vários com funções modestas, pálidas, dentro da narrativa. Não seria um problema, até porque citei como aspecto positivo que colabora para dar vida a cidade onde a estória é ambientada, se esses personagens discretos tivessem participações únicas, mas ocorre que acabam sendo citados decorridos algumas dezenas de páginas, causando confusão, dúvida se são tipos já anteriormente aludidos e sem têm alguma relevância dentro da trama (complica para os brasileiros o fato dos nomes estarem grafados em idioma pouco familiar).


Também considerei algumas interações excessivamente melodramáticas, beirando aos dramalhões mexicanos.

Avaliando as virtudes e os defeitos, segundo as minhas impressões, o saldo é bem mais favorável do que negativo.

É uma leitura que tem a capacidade de fazer rir ao narrar costumes inusitados da época, de gerar enternecimento a determinados personagens expondo dramas de temática universal, de surpreender pelos movimentos bruscos de roteiro e por argumentações extremamente lúcidas e bem fundamentadas, e de fascinar pela humanidade das figuras retratadas com características tão particulares como reconhecíveis.


 Como não recomendar?



A caça de Michael Moore



A dica de hoje para quem curte um bom documentário trata-se do primeiro doc produzido pelo polêmico Michael Moore, que ficou mundialmente conhecido com The Big One, Fahrenheint 9/11 e Tiros em Columbine:

Roger & Me.

O trabalho narra os impactos gerados na sua cidade natal, Flint, estado de Michigan, EUA, pelo fechamento de uma das unidades da General Motors, empresa responsável por empregar mais da metade dos habitantes da pequena cidade e por promover seus anos de glória. O fechamento da montadora não se deu em razão de déficit financeiros, mas por uma decisão controversa do presidente da instituição a época, Roger Smith, de transferir filiais da empresa para países do terceiro mundo com mão de obra mais barata e, assim, aumentar nababescamente os já vultuosos lucros, pouco se importando com o grave problema social gerado nos municípios que se mantinham escorados essencialmente em torno da fábrica para gerar riqueza e estabilidade. 




Moore documenta o naufrágio célere do município de seus conterrâneos que passa a abrigar uma gigantesca massa de desempregados sem perspectivas de conseguir nova recolocação em uma cidade desprovida de recursos, infraestrutura, de comércio aquecido; órfã de seu maior bem: a montadora de carros.

Registra o despejo de centenas de moradores que já não podiam arcar com os aluguéis de seus imóveis, os trabalhos informais (inusitados e eticamente questionáveis, expondo o desespero degradante que as pessoas eram submetidas ante o colapso financeiro) de alguns moradores pela luta pela sobrevivência, o aumento da criminalidade e as soluções estapafúrdias e fracassadas dos dirigentes políticos no afã de reverter o declínio vertiginoso da cidade americana.

E principalmente: a busca de Michael Moore para colher um depoimento do presidente da montadora, e de seus representantes, a respeito da decisão tomada e das consequências desastrosas que incidiram sobre a sua terra natal.  




Quem teve a oportunidade de conferir os trabalhos de maior repercussão do diretor sabe que sua narrativa é marcada por comentários ácidos, ironia ferina e que não tem medo de se colocar diante das câmeras e virar um personagem dentro da história que conta, um protagonista.

Mas não é o caso dessa produção de estreia. A ironia e seu rosto frente à tela também estão presentes, mas o tom debochado é bem mais ameno, sutil (a começar pela fonte utilizada no título, que evoca Tom e Jerry), o que é ótimo no meu entender. Há certas situações que não necessitam de comentários, explicações, basta fazer uso apenas do principal recurso da sétima arte: a imagem.

É exatamente o que ele faz aqui.


Ele se limita a fazer as perguntas que devem ser feitas, as mais óbvias, depois de deixar o espectador devidamente ciente de todo o contexto que o cerca, instaurando momentos tragicômicos com os entrevistados, que se expõem ao ridículo ao proferir argumentações que fogem muito da realidade retratada.

Uma das cenas que acho bem exemplificativa é a do depoimento de uma das nobres senhoras da elite local que declara que o problema do desemprego que assola Flint é culpa dos próprios trabalhadores, que são preguiçosos, segundo ela, querem ganhar dinheiro com sombra e água fresca. Detalhe: ela faz essa declaração enquanto ajeita uma bola de golfe em vasto campo verdejante numa tarde ensolarada, se entretendo com as amigas também madamas.

A hipocrisia, a ganância e a total indiferença para com a responsabilidade social são escancaradas cruamente, sem a necessidade de frases de efeitos ou comentários jocosos porque o absurdo é autoevidente em Roger & Me, documentário que considero o melhor já produzido por Michael Moore.


Vale a pena conferir. 

RESENHA: O Lobo da Estepe: Hermann Hesse


O Lobo da Estepe, livro do escritor alemão nobelado Hermann Hesse (1877-1962), autor de outras obras célebres como Demian e Sidarta, é uma narrativa de dissecação de um tipo, em todos os ângulos possíveis, seja pelo olhar externo do coletivo que o cerca ou pelo exame minucioso da dinâmica do universo interno, psicológico, do ser em análise, no caso, Harry Haller (a semelhança com o nome do autor não é mero acaso, trata-se de uma espécie de alter ego, já que tem a mesma idade que Hesse quando iniciou a escrever esse volume, 50, aliás, a persona do autor está diluída em vários personagens) um brilhante intelectual recatado, socialmente inepto em razão de seu pudor excessivo desenvolvido por sua timidez homérica, que o faz crer que sua integridade moral está atrelada ao isolamento e ao consumo inveterado de Goethe e Mozart.

O livro é dividido em três partes sendo a primeira dedicada a narrar à chegada do protagonista em uma estada temporária em uma pensão sob o ponto de vista dos proprietários, em especial por parte do sobrinho da dona do imóvel.

A segunda parte leva o leitor a se familiarizar com esse universo sob a perspectiva de Haller e, claro, a conhecer pormenorizadamente sua substância interna, a sua visão de mudo, suas predileções, seus temores, desgostos, vontades e o porquê de cultivar certos hábitos. É também o trecho que vem a conhecer o manifesto do Lobo da Estepe, uma teorização com tom doutrinário sobre uma persona supliciada por um conflito interno na qual se divisa o Lobo, responsável por depreciar todas as tentativas de interação duradoura com o mundo externo no afã de persuadir seu lado humano de afastar-se da civilização, pois deseja satisfazer suas vontades de lobo, dentre elas, a de permanecer em solidão serena, e o Homem, que é tentado a estabelecer vínculos, em inserir-se na sociedade sem qualquer tipo de reserva. Manifesto que o impacta profundamente e desperta o desejo de conhecer os autores da publicação e de modificar o seu estilo de vida.



O terceiro ato debruça-se sobre o seu relacionamento com a jovem Hermínia que se propõe a ajudá-lo a se libertar de sua metade Lobo o forçando a se submeter por situações que lhe são muito custosas, mas que na verdade tratam-se de algo banal aos mais simples de espírito, corriqueiro, como dançar em um baile de máscaras, relacionar-se amorosamente com uma desconhecida. Nesse capítulo é convidado a conhecer uma casa de espetáculo singular orquestrada por um dos amigos de Hermínia, local onde passa por situações únicas.

Os primeiros 2/3 do livro é espetacular, genial, não é exagero. Como dito acima é um retrato riquíssimo de uma personalidade arguta tanto sob o prisma do meio social que o cerca, que vive em uma sintonia, um ritmo de vida, comum a todos, contrastando com o mundo a parte que o intelectual se prende, tanto sob a ótica do próprio que parece infiltrar-se na mente do leitor e emular o seu modo de pensar de tão preciso, minucioso, franco, despido de qualquer pudor a narração se mostra ao escaneá-lo por dentro.

Tenho a convicção de que quando uma fotografia de determinada pessoa consegue passar mais sobre ela ao expectador do que um depoimento, uma descrição, um texto significa que o escritor fracassou no seu trabalho. Tenha a certeza de que não há imagem no mundo capaz de dizer mais sobre o tipo em questão do que essa maravilha de Hermann Hesse.



Outro fator que impressiona é a linguagem empregada pelo autor, e nisso cabe prestar honraria a tradução da Bestbolso. É envolvente, cativante, prazerosa de ser lida e aliando a incrível clareza, objetividade de Hesse para tratar de assuntos por vezes intrincados, abstrusos, transmite uma sensação eufórica no leitor de estar consumindo, sem enfado, dezenas de páginas em uma cadeirada só sobre temáticas pouco difundidas, eruditas, raras; o fazendo se sentir especial, de que está aproveitando bem o seu tempo, que ao terminar a leitura, vai se levantar mais enriquecido.  

Somente com uma linguagem agradável seria possível manter a atenção do leitor sobre um enredo que versa por questões tão particulares, introspectivas, porque dá-se a impressão, durante a leitura, que na verdade o que se consome não é uma obra ficcional, mas um ensaio acadêmico, um imenso artigo de um douto em psicologia porque a descrição de ambientes e de aspectos físicos dos personagens são brevíssimos, enxutos, a narração se dedica quase que integralmente nas divagações, nos raciocínios de Harry Haller, as suas reações internas ante aos acontecimentos esporádicos. Sem um texto mavioso, perseverar na leitura seria tarefa hercúlea.

É o êxito de conseguir dá vida, captar a atenção do público para esses tipos de estórias de digestão árdua que fornece os indícios necessários para distinguir os excepcionais do restante. 


O ato final deixa um pouco a desejar, mas o grau de acerto nas duas primeiras partes é tão retumbante que torna a terceira perdoável (embora será considerada ao avaliar no Skoob, por exemplo).

Sem querer dá informações em excesso que possa prejudicar na apreciação da estória, Haller é apresentado a um ambiente fantástico que o leva a vivenciar situações inusitadas, extravagantes, aparentemente sem nexo, sem coerência com a realidade. É uma clara alusão ao psicodelismo delirante consequente do uso de substâncias estimulantes e viciosas, mas que são muito fora da curva, muito estranhas, que desperta inquietação, constante intriga, inquietamento que nunca é desfeito porque respostas não são dadas, a clareza de início dissipa-se e resta ao leitor o esforço solitário de tentar a partir de suas capacidades emoldurar um significado que dialogue com o que fora exposto até esse ato final; o que não seria grande problema se fosse um recurso narrativo casual, mas são várias ocasiões, ocorrências que se sucedem a outras e que necessitam desse esforço para o leitor sentir-se a par do que realmente ocorre. E isto tem o efeito de chatear porque de repente o amante das letras ver-se a margem do universo narrado, o que prejudica a imersão e faz parecer que o volume do texto é mais extenso do que realmente o é.

Se você já experimentou e aprovou Dostoievski, Clarice Lispector, Kafka (achei o estilo de linguagem bem semelhante com este), gosta de leituras de viés intimista, está atrás de uma obra literária que te acrescente algo ao seu término, O Lobo da Estepe é o que procura.  

RESENHA: Bando de Dois



Bando de Dois (Zarabatana Books) é uma HQ nacional de autoria do publicitário e quadrinista Danilo Beyruth (Necronauta: O Almanaque dos Mortos, Astronauta: Magnetar), trabalho que obteve financiamento do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAc) ao vencer edital de 2009. No ano posterior, recebeu várias premiações, como as de Melhor HQ Nacional 2010 (Universo HQ, Blog dos Quadrinhos), Melhor Lançamento 2010 (Prêmio Angelo Agostini) e Melhor Desenhista, Roteirista e Edição Especial Nacional (Troféu HQ Mix).

A estória narra à jornada de libertação e vingança de dois sobreviventes, Tinhoso e Cavêra Di Boi, de um grupo de cangaceiros surpreendidos por uma cilada promovida pela volante (grupo de policiais encarregados de perseguir e executar os referidos marginalizados) do Tenente Honório.

Vagando pelo sertão nordestino, sem recursos e gravemente ferido, Tinhoso se depara com uma aparição fantasmagórica, ao menos supõe que seja uma, já que se encontra em estado de fraqueza delirante, de seus antigos companheiros mortos clamando por libertação.






Tem-se conhecimento que o orgulhoso e implacável tenente depositou em pequenas urnas as cabeças decapitadas de suas vítimas com o intento de exibi-las, triunfalmente, pela cidade como prova cabal de sua incontestável valentia.

Encontrando-se com o seu único amigo remanescente do bando, desenvolve uma estratégia para enfrentar, sozinhos, todo o batalhão comandado pelo algoz e recuperar as cabeças decapitadas dos antigos parceiros.

Claramente a proposta da HQ é tentar adaptar o estilo dos westerns clássicos ao universo do cangaço, da caatinga, do sertão nordestino.


(Jogo luz que não é uma ideia inédita, houve ambição idêntica recentemente lançada; o filme brasileiro O Matador, financiado pelo canal de Streaming Netflix. No entanto, Beyruth tem o mérito de, como citado acima, ter elaborado e publicado essa proposta em 2009, anos antes. Se existiu algo parecido anterior a esse período, confesso desconhecer).


E o faz muito bem.  
  
É inevitável, desde o princípio, sentir-se dentro de uma produção à Sergio Leone com trilha sonora ao estilo de Era Ume Vez no Oeste (Talvez para os mais jovens a HQ evoque a trilha de Red Dead Redemption) graças a linguagem cinematográfica aplicada na narrativa que espelha os enquadramentos, o estilo visual, a dinâmica das ações costumeiras em películas do gênero; as ilustrações panorâmicas que prestam grande serviço em ambientar o leitor nessa atmosfera e o texto enxuto que permiti que as imagens falem por si só.


É diferente do modelo usado por muitas publicações da atualidade que também contam em priorizar a imagem com ilustrações majestosas e se utilizar de uma narrativa extremamente concisa (embora o termo não possa ser aplicável a Bando de Dois porque não é o caso de ser  raso).

Estas optam por esse estilo pouco se importando se será adequado ao tipo de estórias que contam porque obedecem a princípios mercadológicos autoimpostos por pesquisas de mercado más direcionadas e excessivamente simplificadas, que a fazem chegar à seguinte conclusão: a geração Youtube gosta de imagens, piadas e textos de no máximo 280 caracteres. O resultado são fotonovelas disfarçadas de quadrinhos com enredos da densidade de uma pata de formiga. (Mesmo que seja fato que a geração presente tenha dificuldades com obras mais densas, tenho convicção que uma boa estória é sempre capaz de conquistar todo e qualquer tipo de público, afinal, caso contrário, os clássicos do meio não teriam a menor reverberação atualmente, o que não me parece o caso).

Na obra em questão, as ilustrações magníficas, muitas de meias páginas, e a narração pontual  fazem parte de uma estrutura narrativa idealizada, notadamente, para absorvê-las de forma natural, saudável, para realmente se beneficiar com o uso recorrente desses artifícios, para alcançar um propósito, valendo-se deles, que dialogue com o enredo elaborado.



A concisão textual e o visual clean, em um primeiro instante, passa a impressão de ingênua simploriedade, mas que logo é desfeita no folhear das páginas iniciais, que desvelam camadas que enriquecem a trama principal.


Gostei do autor ter evitado romantizar a figura do cangaceiro, o que estabeleceria um maniqueísmo datado, inserindo no roteiro motivações destoantes, e questionáveis, entre a dupla de protagonistas e deixando claro que são figuras que despertam, quase que ao mesmo tempo, fascínio, em razão, suponho, da indumentária singular e pela vida nômade aventuresca, e temor pela conduta de excessos escandalosos e aviltantes. É talvez incorreto classificá-los como heróis ainda que dentro do enredo seja natural o leitor se identificar, “comprar” a causa que defendem, por serem vítimas de uma crueldade inominável por sujeito de modos desprezíveis.

A estória abre espaço ainda para discutir (talvez seja um exagero: pontuar) questões como a crença no sobrenatural, a influência da religiosidade em determinados segmentos (e os atritos gerados com os menos crédulos) e a inércia degradante de certos tipos.


Há um aspecto que me remeteu aos Setes Samurais do Kurosawa (e por tabela, porque não? A Arte da Guerra de Sun Tzu) - e como apreciador do filme foi uma boa surpresa. Trata-se também de um clímax que se baseia na exploração de um ponto fixo para executar estratégias de ataques e defesas; há até, em escala bem menor, pois senão o título perderia o sentido, o recrutamento de um personagem de raiz gêmea para auxiliar a dupla, ou o “bando”, na missão tida como suicida para muitos.

A arte do Danilo Beyruth é riquíssima quanto a expressões faciais, muitas vezes contrastando com a penúria e desolação, propositais, dos ambientes físicos, fato que potencializa essa virtude. Várias ilustrações impactam pelos detalhes do traço que exigi contemplação pausada para captar todos os elementos em cena. Consegue transmitir senso de realidade, a percepção de que cada roupa, armamento, acessório tem o seu devido peso influenciando na mobilidade, nas ações dos retratados. É ágil, eficiente em repassar ao leitor a dinâmica correta da ação e exitosa em promover imersão no universo fictício proposto.

Meu único porém, e correndo o risco de cometer uma injustiça, porque não tenho conhecimentos aprofundados sobre desenho artístico, centra-se na retratação física do proprietário do bar da minúscula Nova Nazaré. 


Talvez tenha sido intenção do autor fazer uma piada com a constituição física de determinados tipos, mas de todo modo, no meu ponto de vista, destoou completamente do estilo empregado nas demais personagens, gerando estranheza, desconforto. No caso em questão, algumas ilustrações pareceram-me evocar um objeto fálico, de tão simplórias.

 Concluindo: achei a HQ ótima, muito bem ilustrada, escrita, com boas sacadas de roteiro e um enredo consistente. Certamente uma ótima opção de quadrinho para quem deseja consumir algo do gênero produzido no Brasil.    

Esse doc não é um Lixo; é Extraordinário!

Quando se esgota as possibilidades de entretenimento audiovisual saídas recentemente no cinema ou nos canais de streaming naturalmente nos voltamos às produções antigas, aos clássicos. Mas são tantas opções e podem ser tão arriscadas, uma vez que refletem o espírito da época em que foram produzidas e por possuírem ritmo próprio, que pode ou não corresponder ao seu gosto, que é sempre uma boa medida pesquisar a respeito e diminuir, assim, a probabilidade de perder tempo irrecuperável.

Deixo como recomendação uma coprodução Brasil-Reino Unido, de aproximadamente 1h: 30min, nem tão antiga assim, 2010, vencedora do prêmio do público de melhor documentário internacional de Sundance, do Festival de Berlim e indicado ao Oscar em 2011:

Lixo Extraordinário (Waste Land).





O doc registra o trabalho do renomado artista plástico brasileiro Vik Muniz para realizar um projeto artístico com caráter de ação social em um bairro periférico da capital do Rio de Janeiro.  

Ele idealiza uma exposição cujos quadros sejam desenvolvidos de forma colaborativa, que insira os moradores da comunidade no processo de criação fazendo-os ter contato com o universo artístico, universo que jamais tiveram oportunidade de interação mínima devido às condições de vida precária. Espera com isso, além de arrecadar fundos com o leilão das obras para ser investido no bairro, transformar a vida dessas pessoas, alargando horizontes, transmitindo conhecimento, infundindo um norte, uma perspectiva, esperança, por meio da arte que reverencia.

Muniz é conhecido por desenvolver pinturas valendo-se de materiais pouco usuais como restos de demolição e alimentos. Ele decide na sua nova empreitada em usar restos do lixo do maior aterro sanitário, ao menos à época, do mundo, localizado no referido bairro da capital fluminense. Interagindo com os sucateiros que trabalham no local, ele seleciona alguns deles para posar de modelos as fotos temáticas que pretende usar como base dos quadros a serem formados com o material retirado do aterro. Também os convidam para auxiliarem na montagem das obras seguindo recomendações prévias. 




O que achei interessante desse documentário é que ele é pode ser lido como vários pequenos documentários dentro de um. Ele pode ser considerado tanto uma biografia do brasileiro (e foi essa a intenção inicial), um retrato do cotidiano duríssimo dos trabalhadores em local tão insalubre e uma ode ao poder transformador da arte, da sua importância, de seu significado, além de abordar questões ecológicas.

Gosto de não ter tido receio de preservar o áudio da língua original de cada nação representada (sabe-se que americano não é lá um grande entusiasta de legendas) e também da discussão acerca da responsabilidade do papel da equipe de documentaristas nos potenciais efeitos psicológicos causados nos sucateiros ao voltarem ao universo desolador da qual saíram depois de terem serem inseridos, repentinamente, noutro tão distinto.

É belíssima a metalinguagem que o projeto em si, que o método conceitual de Muniz escancara, sem necessitar de didatismo, ao traçar o paralelo de que se tudo tem o seu valor, inclusive lixo, o mesmo se aplica as pessoas, independente do extrato social que habitam. Ora, isto é nítido ao conhecê-las um pouco melhor no transcorrer do doc. São solidárias, fraternas, esforçadas, inesperadamente, por jamais se esperar que tenham contato com qualquer tipo de material erudito no lixão, sábias e capazes de fazer arte inovadora.


É um documentário sobre uma história de vida que cede generosamente espaço para se contar outras mais humildes e não menos tocantes. É um retrato ambiental, uma manifestação artística, uma crítica social. É uma vitória da arte, um sinal de esperança, é, acima, de tudo, humano. 

RESENHA: Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos – A Vida de Philip K. Dick


É praticamente consenso que Philip K. Dick (1928-1982) foi uma das mentes mais brilhantes na ficção científica no século XX. Sua capacidade criadora assombrava pela produtividade, autor de mais de 30 romances (vários adaptados para o cinema, como Blade Runner e Minority Report) e dezenas de contos (aliás, alguns deles adaptados ao formato de série, Electric Dreams, pelo canal de streaming da Amazon, com boa recepção de crítica), e por sempre trazer algo de original, fora da curva. Como mortos se comunicando por meio de suas atividades cerebrais mantidas em câmara de preservação, androides escravizados para fins coloniais extraplanetários rebelando-se para ampliar o tempo de vida e mundo distópico onde as forças do Eixo venceram a segunda guerra mundial. Seus livros viraram um dos símbolos da cultura lisérgica em plena ascensão nos anos 60.

Mas é também consenso que tão particular, rara e inusitada que sua poderosa imaginação era a sua vida. Extremamente recluso, portador de agorafobia, paranoico, viciado em medicamentos, com relacionamentos instáveis, convivendo com usuários de drogas, especialista em pregar peças em psicólogos e emissor de declarações no mínimo inusitadas já no seu final de vida que colocaram em dúvida a sua condição mental.



Sem dúvida, genialidade e exotismo atraentes o bastante para se pensar em produzir uma biografia.


E é exatamente do que se trata Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos – A Vida de Philip K. Dick, de Emmanuel Carrère, publicado pela editora Aleph.

Carrère é escritor, ensaísta, roteirista e diretor de cinema. Dirigiu filmes como O Bigode (La Moustache, 2005) baseado em livro de sua autoria e publicou esta biografia ficcional em 1993, no seu país de origem, França.

É importante não perder de vista essa expressão: “biografia ficcional” ou “biografia romanceada”.


Não é um gênero tão difundido e pode pegar de surpresa o leitor que espera encontrar um livro biográfico nos moldes clássicos.

Concentra-se em retratar a vida do biografado esmiuçando o seu ponto de vista, suas reações, seu modo de pensar com base nos fatos colhidos pelo que se tem disponível na imprensa da época e, principalmente, pelo relato de pessoas que conviveram com Dick. Muitas das lacunas que a falta de material confiável impossibilita de serem destrinchadas são preenchidas pelas interpretações do próprio Carrére a partir de seu conhecimento sobre o personagem e de sua experiência de vida.

Dá-se a impressão que se trata de um romance com um narrador onisciente debruçado sobre um protagonista excêntrico onde esquadrinha sua psique nos mínimos detalhes. Não há uso de fontes, sinalização de que determinado fato ou declarações foram extraídas de um registro isento e ilibado ou por depoimento da pessoa citada em uma entrevista de pesquisa. São raras as vezes que deixa claro que fulana afirmou isso ou aquilo em entrevista em dia tal e ano tal, simplesmente a frase é colocada sem cerimônia, como se fosse um típico personagem de romance. 


Por isso, o leitor que não se atentar que consome essa categoria de biografia, até porque a edição da Aleph não escancara na capa ou na 4º capa esse detalhe, pode achar muito estranho, pode desconfiar da qualidade do trabalho de pesquisa por não se comprometer a expor o material utilizado para elaborar o texto. Nem devo dizer que não há motivo para desconfiar, mas como se trata de uma característica de formato resta torcer para que tenha havido excelência quanto a esse aspecto fundamental.

Talvez optar por esse caminho heterodoxo para dissecar essa figura tão complexa tenha sido a escolha mais viável, uma vez que a reclusão do personagem central e as diversas pessoas autodestrutivas que o cercavam provavelmente mostraram-se grandes entraves para colher bons registros sobre determinados períodos de sua vida. Mas certamente explicar e tentar reproduzir o modo de pensar dessa imaginação incrivelmente radiosa, profícua e conturbada ante aos eventos que marcaram sua história não significa que tenha sido o caminho mais fácil.

E nesse sentido é justo elogiar o trabalho de Carrère que consegue, satisfatoriamente, passar ao leitor o porquê de Phil Dick executar certas atitudes tidas como bizarras à maioria das pessoas, explicar as habilidades de interação sociais pouco difundidas sob seu domínio, como as usava e com qual finalidade; transmitir ao leitor a sua paranoia inesgotável, as suas fontes de inspiração para escrever determinadas obras e o grau de desequilíbrio que veio a alcançar nos seus anos finais. Também é exitoso, valendo-se de artifícios dramáticos e de um bom time para distribuir informações e eventos chaves, em gerar apreensão, tensão no leitor sobre o que virá a seguir, especialmente no final do livro, mesmo para quem tenha noção sobre como fora o fim de vida do renomado escritor.


Também destaco o rico vocabulário do cineasta que injeta fluidez, precisão, harmonia, tornando a leitura, no que se refere à composição de frases, agradável e sem dúvida isto se deve, em parte, na edição brasileira, ao trabalho de tradução que nesse caso se deve a Daniel Lühmann.

Mas há problemas. Problemas que dificultam muito a vida do leitor e prejudica na mesma proporção à qualidade da obra.

O mencionado estilo narrativo que privilegia o microcosmo que Phil Dick estava inserido (seria, talvez, uma metalinguagem pelo fato da vida reclusa do autor de Ubik?) em detrimento de um olhar mais panorâmico causa a sensação incômoda de se estar perdido no tempo, de se deparar com uma linha cronológica confusa, apesar do texto pontuar o ano específico em que a narração se encontra, mas geralmente no início dos capítulos, e fornecer noções de linha temporal ao citar eventos e pessoas históricas, como o Watergate.   


Creio que para qualquer fã de uma personalidade admirável seja atrativo ter ciência sobre a repercussão que seus feitos, no caso, obras, geraram no público, na crítica, a época de lançamento ao ter contato com textos analíticos, mesmo que fragmentados, ou depoimentos de pessoas célebres; relatos vívidos de como a figura do escritor era vista pela vizinhança, de que tipo de pai, filho e marido era. Neste volume é possível colher noção sobre esses aspectos, mas sente-se a falta de exemplos mais concretos, de contato com o mundo que o cercava, de um olhar externo. São raras as vezes que isso ocorre. O leitor sente-se sufocado, preso a uma fórmula narrativa que se restringe ao mundo paralelo e estranho que Dick habitava e por mais interessante que esse universo possa se apresentar por vezes, a sensação é de que faria muito bem ao texto respirar o ar puro do mundo ao redor.

As revistas que publicavam os contos de ficção do Dick recebiam cartas dos leitores comentando sobre os seus textos? Sim? Mostre uma, por favor. Qual era impressão de Ridley Scott sobre o livro que ele adaptava? O que ele achou de Dick ao vê-lo pela primeira vez? O que o Dick achou do corte bruto que viu da adaptação? O que seus editores achavam de seus escritos? Dê um pouco de realidade. Confira elementos táteis da época que tenha relação com o personagem, uma tira de jornal, uma crônica, uma observação espirituosa publicada em colunas sociais, um ensaio.

Nada.


Muitas das tentativas de racionalizar as neuroses elencando a série de ocorrências que influenciaram Philip a chegar a conclusões absurdas se tornam cansativas, tal a constância que as neuroses acometiam Dick e pela narração manter-se excessivamente presa no interior esquizofrênico do biografado. Chega-se a um ponto de que a tentação de abandonar a leitura devido ao tédio e o temor de ficar tão confuso e errático quanto o gênio da ficção especulativa é quase invencível.

Acho que a maior mancada desse livro, para não dizer crime, é a constatação de que Carrère resume, sem cerimônia alguma, vários livros e contos do autor revelando detalhes cruciais de cada obra, os chamados spoilers. Quem não leu toda a bibliografia de Philip K. Dick se verá em apuros. E não há um alerta por parte do texto ou do editor. Jesus...

E os resumos são ruins. O que é positivo, mas involuntariamente. 


Resumir universos tão ricos e complexos em um parágrafo já é uma tarefa inglória e quando se utiliza uma linguagem, por vezes, rebuscada, só piora a situação. Dá-se uma ideia muito vaga sobre o que Dick escreveu, parece que as sínteses foram escritas apressadamente, igual um resumo pedante de um ginasial que leu apenas outro resumo na internet. Para quem não teve contato com o texto citado é positivo por deixar em aberto à possibilidade de surpreende-se quando for lê-lo. Mas ressalta-se que é um aspecto favorável derivado de uma deficiência textual.

Até aqui, percebe-se que a edição da Aleph deixa a desejar.

Vamos começar pela capa. 


É belíssima. O tom de rosa é atraente, chamativo. A fonte utilizada é impactante, o design muito bem feito. Minha questão é quanto à escolha do título e ilustração em termos de marketing.

A obra e o nome Phil K. Dick são famosos, mas a sua face, ao menos no Brasil, creio, não. Então ao se colocar, em segundo plano, o seu retrato e, pior ainda, o seu nome em uma linha fina, como subtítulo, “engolido” por uma frase que nem é tão boa assim, não me parece a escolha mais inteligente.

Ajudaria a minorar um dos pontos falhos citados quanto ao texto colocar material de apoio no miolo do livro. Fotos, pôsteres, caricaturas, imagens de objetos, das casas que morou, da rua, de manuscritos, de autógrafos etc. 


Novamente: nada. Nem uma mísera foto.

A imagem estilizada que foi escolhida para estampar as capas não permitir distinguir detalhes do rosto de Phil Dick. É a primeira vez que li uma biografia que tive que consultar o Sr. Google para me lembrar do rosto da personalidade biografada. (A imagem acima está bem melhor do que a versão impressa que tenho).

A conclusão é: se você ainda não teve a oportunidade de conhecer a produção literária de Philip K. Dick essa biografia ficcional não é o melhor caminho para começar a se familiarizar com o universo do escritor. Se já consumiu tudo o que deveria ser consumido do mestre da ficção científica, é provável que a leitura do volume acrescente algo, mas não me parece um livro indispensável.



RESENHA: Nova York: A Vida na Grande Cidade – Will Eisner


Esse encadernado lançado pelo selo da CIA das Letras, Quadrinhos na CIA, é uma coletânea de quatro graphic novels do pioneiro desse conceito, um dos primeiros quadrinhistas ilustres da indústria de comics, do criador da série The Spirit, o multipremiado Will Eisner, que inclusive nomeia o principal prêmio do segmento nos EUA, o Eisner Award, que versam sobre o mesmo tema: a vida na grande cidade. Mais especificamente: Nova York.

Apesar de ambientar as estórias no município de origem, Eisner consegue, por meio do seu olhar arguto, de sua sensibilidade profunda e rara, universalizar a temática dos relatos ao retratar hábitos, tipos e situações características da vida em uma metrópole, sendo possível qualquer pessoa que já tenha passado por tal experiência se identificar com várias de suas descrições.

O volume é composto por numerosos microcontos intercalados por enredos mais aprofundados, muito deles centrando-se sobre temas, situações, pessoas que normalmente passam batido pelo olhar da multidão no ritmo frenético da cidade grande, mas não pelos olhos atentos de alguém como Eisner, que parece agradar-se muito ao assumir uma cadência díspar da maioria e se dedicar a contemplação, ao estado de alerta para captar essas pequenas minúcias submersas pelas necessidades prementes; de se comportar como um sagaz expectador da vida em movimento. Aliás, na segunda metade do volume passa a assumir escancaradamente essa posição ao se desenhar observando o público com uma caderneta e lápis na mão.





São estórias que giram em torno de um microcosmo de pessoas que interagem com um hidrante, por exemplo, que participam da acumulação do lixo em um bueiro, que utilizam uma escadaria para socializar ou para contribuir em uma brincadeira; sobre o universo de desejos e aflições que ocupam a mente dos passageiros em um vagão lotado do metrô; sobre os desencontros provocados pelo pandemônio da urbe; sobre pessoas solitárias, amarguradas, a margem da socialização esperada em um espaço com tamanha concentração portentosa de seres. Relatos envolvidos pelo humor irônico e pelo tom polidamente crítico quanto às injustiças sedimentadas no cerne da ordenação social do olhar inquieto e onisciente de Eisner.

Pelo estilo ágil de sua escrita e traço, lapidada por anos ao desenhar tiras para jornais, o leitor rapidamente se vê testemunhando a formação de um amplo mosaico que ao seu final concluirá uma dissecação minuciosa sobre o modo de vida em uma metrópole populosa (partindo do começo do século XX até o princípio dos anos 90) ao somar todos os fragmentos dispersos. Técnica, seja por parte do autor ou por obra do trabalho editorial, que nesse caso se mostrou tão eficiente ao estabelecer um panorama quanto a uma abordagem generalista que se restringir-se a assuntos macros.
  
É curioso observar que, estando ciente do período histórico em que se passam esses singelos contos (o princípio da superpopulação nas cidades, a degradação de bairros, cortiços, conjuntos habitacionais; os meios de transportes insuficientes, a proliferação de crimes, o cinza devorando descontroladamente o verde por meio de construções nababescas e irregulares), é quase inevitável sentir que na verdade se descreve uma cidade terceiro mundista como São Paulo; e uma vez instaurada essa impressão vem a inquietadora constatação do quão atrasados nós, moradores da periferia dos centros de poder e pujança, estamos. Pois se muitas dessas situações de precariedade que marcaram a época que o autor resgata, ou registra, ainda perduram nas grandes cidades do planeta, muitas delas, neste século XXI, já não se encontram tão presentes no cotidiano de seus habitantes, ao contrário do terceiro mundo que ainda não apresenta perspectivas de, nem sequer a longo prazo, sanar esses problemas devido a inércia não só da casta política, mas também da população. 





O passado longínquo de Eisner continua sendo a realidade de nossos dias.

As ilustrações são um desbunde visual tamanha a riqueza dos detalhes que conferem nos ambientes, na paisagem, nos prédios, nas roupas, nas expressões faciais, na linguagem corporal dos personagens. Percebe-se o impacto das emoções intensas influenciando o modo de andar dos protagonistas, o peso e a elasticidade das roupas, a passagem do tempo deteriorando fisicamente as pessoas. São vários os impactos embasbacante de paisagens de páginas inteiras ou de meias páginas proporcionados pela quantidade de informações a ser absorvidas. Como os inúmeros objetos espalhados no entorno de uma linha de trem, as dezenas de pessoas sobre uma calçada fazendo movimentos ou ações específicas; as rachaduras nas calçadas, o lixo sendo arrastado pelo vento, os adornos arquitetônicos dos vertiginosos edifícios. Sem contar a maestria do uso dos objetos em cena para provocar transições de uma ação a outra sem necessitar de novos ângulos e, consequentemente, mais papel. Novamente outro benefício extraído dos longos anos produzindo tiras nos jornais.

O estilo enxuto e objetivo dessa técnica que se utiliza muito da linguagem gestual, aliada à coloração preta e branca, transmite a ideia de se acompanhar uma série de curtas-metragens do cinema mudo. Não foram raras as vezes que me deparei pensando em Chaplin ou inserindo, mentalmente, uma trilha sonora típica dessa época, dedos frenéticos no piano, durante a leitura.







Mas há circunstancias nesse estilo que incomodam.

Ocorre que a objetividade cirúrgica, por vezes, prejudica o desenvolvimento do vínculo emocional dos personagens com determinados fatos ou objetos. A elaboração sucinta, econômica, dessas conexões dificulta a compreensão da importância de determinados eventos na vida dos protagonistas, pois parece evidente que ficou faltando indícios, elementos que justifiquem determinadas atitudes e que façam o leitor acreditar na trama que se desenvolve, que o faça vê-la como crível ao invés de um enredo eivado de artificialismo, por mais que se saiba da ocorrência dessas situações narradas dentro de nossa realidade e do caráter plausível que carregam.

O paralelo que se pode traçar entre as melhores estórias, onde o estilo funciona plenamente, e as piores, onde fracassa fragorosamente, é: quando bem sucedido, Chaplin. Quando não, pequenos curtas metragens que remonta aos primórdios dos estúdios Disney, tal a simploriedade. Dá-se a impressão que se consome algo destinado ao público infantil.





A edição da CIA é belíssima, robusta, com uma capa maravilhosamente colorida. Há bons textos de introdução como o de Neil Gaiman (que por sinal, ando gostando mais de seus comentários sobre outras obras do que propriamente de seus textos originais), além de conter artes finalizadas que foram preteridas pelo autor.

Para quem gosta da linguagem de tiras de jornais, é fã de Will Eisner, aprecia ilustrações detalhistas ao mesmo tempo que monumentais; gosta de contos, dramas humanos, tipos marginalizados e análises perspicazes sobre a vida na sociedade moderna, Nova York: A Vida na Grande Cidade, é uma boa pedida. Não irá decepcionar ou gerar grandes desapontamentos, as qualidades encobrem os eventuais deslizes favorecendo enormemente a avaliação geral do título. Porém quem prefere trabalhos com roteiros densos, diálogos afiados e reflexões ácidas não é o investimento mais aconselhável.